Decisão judicial histórica: projeto de créditos de carbono no Quênia viola direitos indígenas
3 fevereiro 2025
Uma decisão judicial no Quênia mudou o rumo de um emblemático projeto de créditos de carbono usado pela Meta, Netflix, British Airways e outras empresas multinacionais, e que há muito tempo vem sendo criticado por ativistas indígenas.
A decisão, em um processo movido por 165 membros das comunidades afetadas, afirma que duas das maiores áreas de conservação ambiental criadas pela NRT (Northern Rangelands Trust) foram estabelecidas de forma inconstitucional e sem base legal.
O tribunal também determinou que os guardas ambientais fortemente armados da NRT - que foram acusados de repetidos e graves abusos de direitos humanos contra povos indígenas da área - devem sair das áreas de conservação ambiental.
Uma das áreas envolvidas no caso, conhecida como Biliqo Bulesa, contribui com cerca de um quinto dos créditos de carbono envolvidos no controverso projeto da NRT para vender compensações de carbono a empresas ocidentais.
É provável que a decisão se aplique também a outras áreas que estão envolvidas no projeto de créditos de carbono, pois elas estão na mesma situação jurídica, embora não tenham participado do processo judicial. Isso significa que todo o projeto, com o qual a NRT já lucrou milhões de dólares (o valor exato não é conhecido, pois a organização não publica contas financeiras), agora está em risco.
Neste vídeo, Abdullahi Hajj Gonjobe, líder do povo indígena Borana (Quênia), comenta as chamadas “reservas comunitárias”, criadas pela organização Northern Rangelands Trust (NRT), e descreve o devastador impacto que elas têm sobre seu modo de vida pastoril e sobre os padrões de pastagem dos seus rebanhos. Ele também expõe o projeto de créditos de carbono da NRT, que não tem o devido consentimento das comunidades envolvidas.
O caso foi apresentado pela primeira vez em 2021, mas a sentença só foi proferida recentemente pelo Tribunal de Terras e Meio Ambiente de Isiolo. A questão jurídica no centro desse caso foi identificada no relatório “Carbono de Sangue” da Survival International, que também contestou a própria base do projeto de créditos de carbono da NRT: sua alegação de que, ao controlar as atividades do gado dos indígenas, aumenta a vegetação da área e assim a quantidade de carbono armazenada no solo.
A decisão também é a mais recente em uma série de retrocessos na credibilidade da Verra, o principal órgão usado para verificar projetos de crédito de carbono. Embora algumas das áreas de conservação participantes do projeto da NRT não tivessem uma base legal clara e, portanto, não poderiam “possuir” ou “transferir” créditos de carbono para a NRT, o projeto ainda assim foi validado e aprovado pela Verra e passou por duas verificações em seu sistema. As denúncias da Survival International levaram a uma revisão do projeto em 2023, que também não resolveu o problema.
A diretora da Survival International, Caroline Pearce, disse hoje: “A sentença confirma o que as comunidades vêm dizendo há anos: que elas não foram devidamente consultadas sobre a criação das áreas de conservação e que prejudicaram seus direitos territoriais. Os financiadores ocidentais da NRT, como a UE, a França e a USAID, devem agora parar de financiar a organização, pois estão colocando recursos em uma operação que agora foi julgado ilegal.
“Essa decisão expõe algumas questões muito incômodas tanto para a NRT quanto para a Verra, pois mostra que não há base legal para pelo menos uma parte significativa do projeto de créditos de carbono. Os créditos de carbono emitidos pela NRT devem agora ser considerados inválidos.”
“Infelizmente, esse desastre da NRT está longe de ser um problema isolado. Muitos desses projetos de compensação de carbono seguem o mesmo padrão ultrapassado do modelo colonial de conservação ambiental, alegando “proteger” a terra enquanto violam os direitos de povos indígenas e obtêm grandes lucros.
“O fato de a NRT também ter burlado caminhos legais ao fazer isso não deveria ser surpreendente, e foi apontado pela Survival anos atrás. Já passou da hora da Verra finalmente realizar uma análise adequada e descartar esse projeto de uma vez por todas.”
Notas aos editores:
- A NRT agrupa 45 “áreas coletivas de conservação” no norte do Quênia, muitas das quais são terras de milhares de indígenas Borana, Samburu e Rendille. Isso representa mais de dez por cento de todo território do Quênia.
- O caso foi apresentado ao Tribunal Superior de Isiolo em setembro de 2021. A sentença foi proferida pelo Tribunal de Terras e Meio Ambiente de Isiolo em 24 de janeiro de 2025.
- A ação judicial acusou a NRT de estabelecer e administrar áreas de conservação em terras comunitárias não registradas, “sem a participação ou o envolvimento da comunidade”, incluindo a não obtenção do consentimento livre, prévio e informado, antes de delinear e anexar terras comunitárias para a conservação privada da vida selvagem. A queixa diz, em parte, que “(a NRT), com a ajuda dos guardas ambientais e da administração local, continua a usar intimidação e coerção, bem como ameaças aos líderes das comunidades quando estes tentam se opor a qualquer um de seus planos”.
- O caso foi apresentado por comunidades de duas áreas protegidas, a Biliqo Bulesa Conservancy (que está na área do projeto de créditos de carbono da NRT e onde 20% dos créditos de carbono do projeto foram gerados) e a Cherab Conservancy.
- Essas duas áreas de conservação, segundo a decisão do tribunal, foram estabelecidas ilegalmente. Foram emitidas liminares permanentes proibindo a NRT e outros de entrar na área ou de operar seus guardas ambientais ou outros agentes lá.
- O governo deve continuar registrando as terras comunitárias protegidas de acordo com a Lei de Terras Comunitárias e deve cancelar as licenças da NRT para operar nas respectivas áreas.
- O projeto de compensação de carbono da NRT é supostamente o maior projeto de créditos de carbono, que captura carbono no solo, do mundo.