É preciso manter missionários evangélicos longe de povos indígenas isolados

© Peetsa/FUNAI/CGIIRC Archive

No início de 2020, o presidente Jair Bolsonaro nomeou um missionário evangélico para comandar a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da FUNAI. O nomeado, Ricardo Lopes Dias, era ligado à Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB, parte da organização americana New Tribes Mission). “Repaginada” como Ethnos360 nos Estados Unidos, é uma das maiores e mais radicais organizações missionárias do planeta. Seu objetivo é forçar o contato e evangelizar todos os povos indígenas isolados ao redor do mundo. 

Os indígenas isolados não têm resistência a doenças comuns introduzidas por quem vem de fora. Assim, povos inteiros já foram aniquilados após o primeiro contato. Por 30 anos, a política de não contato da FUNAI prezou por respeitar o isolamento para a segurança desses povos.  

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A MNTB quer derrubar essa premissa de não contato. O presidente da MNTB, Edward Gomes da Luz, disse à BBC que missionários deviam ter liberdade para atuar em qualquer comunidade indígena, incluindo as isoladas. “Têm que haver uma política de aproximação desses povos”, ele falou. A MNTB fez lobby com o governo brasileiro para que Ricardo Lopes Dias fosse nomeado para liderar a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato, de acordo com o filho de Luz. Ricardo Lopes Dias foi missionário da MNTB entre 1997 e 2007, no Vale do Javari, local com a maior concentração de povos indígenas isolados de todo o mundo. Ele trabalhou ativamente para converter comunidades indígenas

Após meses de pressão da organização indígena UNIVAJA, de indígenas de todo o país e da Survival e seus apoiadores em todo o mundo, Lopes Dias foi removido do cargo em novembro de 2020.

Mas a MNTB ainda representa um enorme perigo aos povos indígenas isolados. A página do Facebook da MNTB celebra a compra recente de um novo helicóptero que será usado no estado do Acre. No vídeo da campanha de arrecadação de recursos, o missionário e presidente da MNTB, Edward Gomes da Luz, declara que o helicóptero será usado para localizar comunidades isoladas que vivem na região. Eles dizem: “O programa de voo do novo helicóptero permitirá que a Aviação Ethnos360 assista a todos os nossos missionários que estão na região e abra portas para alcançar dez novos grupos que vivem em isolamento extremo.”

Líderes indígenas do Vale do Javari denunciaram os planos da MNTB como uma “investida etnocida e genocida”. A Survival International está lutando pelos direitos dos povos indígenas isolados, e você?

Aja Agora – Assine o manifesto pela proteção das terras dos povos indígenas isolados

Beto Marubo, da Univaja, disse: “Entre nós, os Marubo, eles [MNTB] destruíram nossa organização social, nossa convivência. Surgiram divergências, além de desconstruírem o mundo em que fomos educados por milênios… A atuação missionária significará a perda total dos últimos povos isolados que temos no Vale do Javari.”

Waki, um líder Matsés, afirmou: “Eu não quero o Ricardo na FUNAI. Conhecemos bem o Ricardo. Ele aprendeu a nossa língua. Nós não queremos a igreja aqui porque não posso pintar meu rosto, não posso tomar rapé, não posso usar veneno de sapo. Por isso que não quero deixar.”

Em uma carta aberta, o povo Matsés afirmou: “O senhor Ricardo nunca teve autorização para entrar em nossa aldeia. Ele manipulou parte da população Matsé para que fosse fundada uma nova aldeia. As lideranças tentaram ir até essa nova aldeia, em busca de um diálogo, mas foram expulsas com violência. O senhor Ricardo tirou proveito dos Matsés, se apropriou de nossa cultura e vendeu sua casa na aldeia para a igreja. Não queremos novos abusos, então não vamos deixar o senhor Ricardo entrar na nossa terra.”

Paulo Marubo, presidente da Univaja, disse: “Eles dizem para esses jovens que o movimento indígena só atrapalha, que nem toda cultura é cultura, é coisa de demônio… Quem já foi pastor nunca deixa de ser.”

Evangélicos no Brasil de Bolsonaro

Em 2017, Bolsonaro declarou: “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico não. O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”. Bolsonaro recebeu duas vezes mais votos de evangélicos do que o segundo colocado nas eleições de 2018.

Durante o Governo Bolsonaro, evangélicos ocuparam posições de poder politico considerável no governo e no Congresso.

Em 2019, o presidente Bolsonaro nomeou Damares Alves, uma pastora evangélica, como Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Ela também acredita que “é o momento de a Igreja ocupar a nação”, e já questionou a política de não contato com os povos indígenas isolados. Antes de tomar posse, Damares declarou: “Vamos trazê-los [os indígenas isolados] para o protagonismo. Não é porque estão isolados, que estão esquecidos e deixados a cuidados de ONGs. Quem vai assumir o cuidado desse povo isolado é o Estado.”

Claramente encorajados por Bolsonaro, evangélicos de outras denominações tentaram entrar em contato com indígenas isolados. Um membro da Comunhão Batista Bíblica Internacional está sendo investigado por autoridades brasileiras por entrar no território dos Hi-Merimã, um povo indígena isolado, em 2019. Ele e seus guias foram a terras abandonadas e, segundo a FUNAI, “colocaram em risco as vidas de um povo isolado inteiro”.

Em 2019, a  União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) denunciou três missionários evangélicos que entraram no território de um povo indígena isolado temendo que eles forçassem o contato. A Univaja alerta que um deles está se preparando para voltar ao Vale do Javari para entrar em contato com um grupo isolado. 

No início de 2020, o presidente Jair Bolsonaro nomeou um missionário evangélico para comandar a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da FUNAI. O nomeado, Ricardo Lopes Dias, era ligado à MNTB. Após meses de pressão da organização indígena UNIVAJA, de indígenas de todo o país e da Survival e seus apoiadores em todo o mundo, Lopes Dias foi removido do cargo em novembro de 2020.

Missionários e povos indígenas

A principal sede da Missão Novas Tribos fica nos Estados Unidos. Estabelecida em 1943, ela arrecada muito dinheiro para fundar um império global de aproximadamente 3.000 missionários, que operam na América Latina, Ásia e África. Seus fundadores declararam que: “com determinação inabalável, nós arriscamos as nossas vidas e apostamos tudo em Cristo até que nós tenhamos alcançado a última tribo, independentemente de onde essa tribo possa estar”.

Globalmente, existe um largo espectro de organizações missionárias trabalhando com povos indígenas: algumas comparativamente benignas ou benevolentes; outras mais radicais e intransigentes na defesa de povos indígenas.

As mais notáveis são as de missionários católicos influenciados pela Teologia da Libertação. Eles não têm como seu objetivo evangelizar os povos indígenas, mas sim promover relações com essas comunidades baseadas no diálogo inter-religioso e no respeito.  

Muitos desses missionários viraram alvo e foram mortos por apoiar povos indígenas e fazer campanha por seus direitos. 

Em 1971, sob os auspícios do Conselho Mundial de Igrejas, um grupo de antropólogos fez uma reunião em Barbados para discutir a situação dos povos indígenas. A Declaração de Barbados – Pela Liberação dos Indígenas denunciou violações de direitos humanos cometidas por governos, missionários e outros. O documento condena missões religiosas e sua “imposição de critérios e padrões alheios às sociedades indígenas dominadas e que encobrem, sob um manto religioso, a exploração econômica e humana das populações indígenas”. Ele pede ainda a suspensão de toda a atividade missionária e convoca os missionários a apoiar a “libertação das sociedades indígenas”.  

Em 2015, em um discurso histórico em Santa Cruz na Bolívia, o Papa Francisco reconheceu o sofrimento que a Igreja Católica causou aos povos indígenas e disse: “Peço humildemente perdão, não só pelas ofensas da própria Igreja, mas também pelos crimes contra os povos originários durante a chamada conquista da América… Muitos pecados foram cometidos contra os povos latinos em nome de Deus.”

Por que missionários podem ser perigosos?

Os missionários podem introduzir doenças devastadoras nas comunidades indígenas. Uma grande crítica ao MNT é o enorme risco que os seus esforços evangelizadores representam para os povos indígenas isolados ou recentemente contatados, que são altamente vulneráveis à doenças introduzidas de fora, como a gripe, o sarampo e a varíola, às quais não têm imunidade.

Os Yanomami formam o maior povo relativamente isolado da América do Sul. Eles vivem nas florestas e montanhas do norte do Brasil e do sul da Venezuela. Em 1967, a filha de um missionário MNTB chegou ao território Yanomami no norte do Brasil carregando sarampo, que logo infectou os Yanomami, uma população altamente vulnerável. A MNTB estava mal preparada para lidar com a epidemia que se seguiu e acabou infectando 165 e matou 17 indígenas Yanomami.

Os missionários não se mostraram preocupados nem se declararam culpados por esta catástrofe. Um deles pontuou: “Foi difícil aceitar que muitos dos nossos amigos passaram para a eternidade sem conhecer Cristo. No entanto, sabemos que Deus nunca comete um erro”. Outro missionário da MNTB reclamou que os Yanomami pareciam contentes com a sua cultura e não estavam dispostos a acumular bens materiais através do trabalho e da poupança.

© Fiona Watson/Survival

Em 1987, a MNTB contatou secretamente uma comunidade Zo’é no norte do Brasil. Pouco tempo depois, muitos adoeceram de gripe e malária, às quais não tinham imunidade. Entre 1982 e 1988, a comunidade perdeu cerca de 25% de sua população original para estas doenças. Jirusihú, um homem Zo’é, disse à Survival: “Antes, quando não havia homem branco, os Zo’é não tinham doença. No passado havia muitas crianças, mulheres. Hoje em dia, não há muitas”.

Missionários cometeram abusos infantis e introduziram prostituição em comunidades

Em 2019, cinco mulheres americanas revelaram no noticiário da NBC que foram abusadas sexualmente por dois missionários da MNT enquanto frequentavam as escolas da missão. Algumas, na época, tinham apenas seis anos de idade. 

A MNT encobriu o abuso durante anos. Uma vítima contou à NBC: “As organizações profundamente religiosas são grandes lugares para os pedófilos se esconderem… A cultura do silêncio foi incorporada na formação. Não fofocar e não falar de nada que não doutrine. É apenas uma receita para abusos”.

O CEO da MNT emitiu um pedido de desculpas pelos “horríveis abusos sofridos pelos perpetradores quando eram crianças e frequentavam um internato da MNT, e pelo mau trato das situações quando foram levadas ao conhecimento da NTM, há cerca de 30 anos.”

Em 2013, um missionário da NTM foi preso nos EUA e condenado a 58 anos de prisão por abuso sexual e produção de material pornográfico envolvendo crianças indígenas do povo Katukina no Brasil. 

Davi Kopenawa Yanomami relata como um missionário de MNTB, que já tinha engravidado uma jovem mulher casada, começou a dormir com uma Yanomami. “Fiquei furioso por ele ainda afirmar fazer parte do povo de Teosi [Deus]!” diz Davi. “Ele nos enganou com todas as suas mentiras.” A resposta da MNTB foi simplesmente despedir o missionário, que mais tarde conseguiu trabalho na FUNAI.

Outros relatos revelam que as táticas de evangelização da MNT levaram à prostituição de crianças indígenas. O escritor Norman Lewis visitou a comunidade Panare na Venezuela em 1983 e descreveu como os indígenas tinham que pagar taxas aos missionários. Sem tradição de acumulação de bens, alguns tinham muito pouco para vender para pagar as suas dívidas, ao ponto de um homem Panare ter prostituído a sua filha.

Depois de terem sido assentados à força e expulsos das suas terras por agricultores, as crianças Ayoreo e Aché no Paraguai foram forçadas a se prostituir ou a trabalhar em condições análogas à escravidão nas fazendas. A MNT parece não ter feito nada para impedir os abusos e teria até se beneficiado com eles: Norman Lewis descreve como o missionário da MNTB, Jim Stolz, contratou quatro indígenas Aché como trabalhadores para os agricultores locais em troca de dinheiro para os fundos da missão.

© A. Kohmann/Survival

Membros do povo Suruwaha contam como os missionários evangélicos Márcia e Edson Suzuki disseram à comunidade que iam levar uma menina, Hakani, para receber tratamento médico, mas nunca a trouxeram de volta. O casal tinha, de fato, adotado a menina e afirmaram falsamente que membros do grupo tentaram matar Hakani enterrando-a viva porque ela era deficiente. Utilizaram então esta mentira para angariar dinheiro e reunir apoio para criar uma lei que permitisse retirar à força as crianças indígenas dos seus pais.

Alguns missionários tentam “resgatar” crianças indígenas

Damares Alves, Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, é co-fundadora de uma ONG evangélica chamada Atini, que está por trás de um controverso projeto de lei no Congresso conhecido como Lei de Muwaji. Se este projeto de lei for aprovado, dará ao Estado, e por extensão aos missionários, o poder de retirar as crianças indígenas das suas comunidades por mera suspeita de que elas possam estar em risco. É fácil entender como esta lei poderia ser manipulada e subvertida por grupos evangélicos que já têm uma longa história de remoção de crianças indígenas das suas comunidades sob vários pretextos. 

A Ministra Damares Alves, advogada qualificada, está atualmente sob pressão de mulheres indígenas e de grupos da oposição por não ter seguido os procedimentos legais formais quando adotou Lulu, uma índia Kamayurá de seis anos de idade. De acordo com indígenas Kamayurá, a criança foi levada da comunidade para tratamento dentário e nunca mais regressou. A família de Lulu diz que a ministra não pediu autorização para adotar a criança, nem sequer os informou do seu plano.

Um documentário televisivo australiano transmitido em 2011 foi filmado em cooperação com a Atini e convidou os telespectadores a enviarem doações para a organização evangélica. O filme retratou falsamente o povo Suruwaha recentemente contatado como sendo maligno, adorador de satanás, perpetuando o mito de que os povos recentemente contatados são mais violentos do que outras sociedades.

A Survival fez uma queixa formal ao regulador de transmissão televisiva da Austrália, argumentando que o retrato do filme sobre os Suruwaha era falso e incitava o ódio racial (muitos comentários dos espectadores online eram profundamente hostis e racistas – um deles exigia que o povo fosse morto). A queixa foi aceita por um tribunal federal.

Eles muitas vezes demonstram desprezo racista pelos povos indígenas

Por trás das crenças religiosas extremas do MNT está um forte elemento de racismo e desprezo pelos povos indígenas e pelas suas diversas religiões, culturas e meios de subsistência. Brown Gold, um boletim informativo mensal da MNT, agora já rebatizado, descreve os povos indígenas como “pequenos selvagens pardos” e a sua religião como “uma forma de culto espírita que é energizada por forças satânicas”. 

A MNT funciona usando o medo e a lavagem cerebral. Desesperados para converter o povo Panare na Venezuela, os missionários chegaram a dizer que os Panare haviam assassinado Jesus Cristo. A represália e o sentimento de culpa levaram alguns Panare a sucumbir e “abandonar os suas maneiras satânicas”.

© NTM

Um missionário da MNT descreveu os Yanomami como “completos selvagens que não usam roupas e estão totalmente mergulhados na bruxaria e na adoração ao Diabo”. Os Yanomami acreditam firmemente na igualdade entre as pessoas. Nenhum caçador come a carne do animal que matou. Em vez disso, ele a compartilha entre amigos e familiares. Em troca, ele receberá carne dada por outro caçador.

O controverso antropólogo Napoleon Chagnon, que trabalhou com os Yanomami na Venezuela, foi apresentado à comunidade por um missionário da MNT a quem chamou de “bom amigo”. Chagnon descreve os Yanomami como “arteiros, agressivos e assustadores”, fazendo eco de algumas das caracterizações depreciativas que parte da MNT faz dos povos indígenas.

Chagnon doou dinheiro à MNT e escreveu ao seu presidente expressando “satisfação com a forma como os trabalhadores de campo têm abordado a sua tarefa de evangelizar os Yanomami”, o que ele descreveu como uma “tarefa ingrata”. O Presidente da Comissão Europeia disse que os Yanomami tiveram “sorte” em ter contato com os missionários e “é ilusório supor que os povos primitivos de hoje não serão afetados pela cultura ocidental”. 

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Talvez os incidentes mais notórios envolvendo a Missão Novas Tribos ocorreram no Paraguai em 1979 e 1986 durante a ditadura de Stroessner, quando missionários da MNT ajudaram a organizar “caçadas” de indígenas isolados do povo Ayoreo. Vários indígenas foram mortos nesses encontros, nos quais membros do grupo isolado Ayoreo foram forçados a sair da floresta, e muitos outros depois morreram de doenças.

Na sequência destas controversas “caçadas”, a Survival perguntou à MNT quantos indígenas recém-contatados sobreviveram ao contato. Les Pederson, o coordenador da MNT para a América Latina, respondeu: “Nós não mantemos esse tipo de registo detalhado. Eles estão todos muito bem misturados com os outros lá em baixo e esses indígenas são todos muito parecidos”.

Não se preocupam com o corpo, desde que tenham a “alma”

Em 1975, o escritor Norman Lewis visitou o acampamento da MNT, que queriam contatar o povo Aché, no Paraguai. Ele disse que essa foi a “experiência mais sinistra” da sua vida. Em uma cena terrível ele descreve os sobreviventes de uma recente “caçada”: “duas senhoras idosas deitadas em alguns trapos no chão nos últimos estágios de definhamento e claramente à beira da morte… não havia comida nem água à vista… Uma mulher … estava desesperada, com feridas não tratadas na perna. Um menino pequeno, nu e choroso, sentou-se ao seu lado”. 

© Luke Holland/ Survival International 1979

O pesquisador da Survival Luke Holland visitou outro acampamento da missão MNT no Paraguai em 1979 e descreveu o encontro com uma família Ayoreo que sobreviveu a uma “caçada”: "O rapaz, Dapui estava debaixo do seu ‘cobertor’… Uma visão terrível. Quatro pessoas. Um rapaz, com o cabelo amarrado num grande rabo de cavalo. A sua mulher, Dujaenguta, com uma perna engessada. Ela havia quebrado a perna em dois lugares, depois de cair de uma árvore durante uma “caçada”. Seu seio direito tinha sido alvejado num encontro anterior com indígenas “domados” de El Faro Moro [o acampamento da missão MNT]. 

“O quarto era Eode, um homem idoso – o pai da mulher ferida. Todos tinham sintomas de gripe e tossiam constantemente. Tinham os olhos lacrimejados e estavam imundos. O velho, fraco e magro. Os seus olhos semi-fechados. Ele estava completamente deitado de um lado, sem nenhum vigor. A mulher também estava deitada. O homem com o rabo de cavalo se sentou em silêncio, o seu rosto era uma trágica máscara de resignação”.

© A. Kohmann/Survival

O antropólogo Mark Münzel, que investigou o contato forçado do Aché por fazendeiros e funcionários do governo paraguaio na década de 1970, gravou uma “canção de pranto”, em que os Aché lamentam a destruição do seu povo e da sua pátria por invasores: “nunca andaremos livremente entre as árvores da floresta… As nossas meninas, que eram belas flores, foram pisadas pelos brancos e levadas violentamente para longe… agora os Aché se deitam em cinzas e já não saem mais de suas casas… Os Aché, oh os Aché já não são mais Aché”. Muitos Aché foram trazidos para viver em condições cruéis num campo, que a MNT assumiu após a saída do governo.

Eles facilitam o acesso à terra e aos recursos indígenas

Uma grande crítica a missionários fundamentalistas, como os da MNT, é sua cumplicidade com muitos governos cuja agenda neocolonial visa integrar povos indígenas à sociedade nacional e explorar suas terras e recursos. Como explica Dinaman, liderança do povo Tuxá (Brasil): “Eles não querem apenas evangelizar; eles querem trazer comunidades para as cidades e liberar nossas terras para plantar soja, para o garimpo e para criar gado”.

As ações da MNT ferem os direitos dos povos indígenas, ao forçar assentá-los, destruindo sua identidade e criando dependência. Os missionários dão ênfase à conversão dos povos indígenas, em vez de priorizar sua saúde e bem-estar. Alguns de seus contatos mais notórios e vergonhosos aconteceram no Paraguai nas décadas de 1970 e 80, quando organizaram as brutais “caçadas” para capturar indígenas nômades isolados Ayoreo-Tobiegosode nômades – o “povo do lugar dos porcos selvagens”.

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Os Ayoreo foram trazidos para fora das florestas contra sua vontade, levados para campos horríveis, forçados à servidão e à dependência pelos missionários, e aterrorizados a renunciar às suas próprias crenças. Em poucos dias depois do contato, alguns Ayoreo morreram de doenças para as quais não tinham imunidade. Outros sucumbiram mais tarde às doenças que ainda hoje os assolam.

Eode, um homem Ayoreo, na base da Missão Novas Tribos em 1979. Capturado em uma “caçada humana”, ele morreu alguns dias depois. © Luke Holland/ Survival

Chagabi, um líder Ayoreo, disse à Survival em 2019: “Eles pensaram que, nos forçando a sair da floresta, poderíamos ser salvos. Não era isso que queríamos”. Depois disso, muitos Ayoreo-Totobiegosode morreram de doenças, problemas respiratórios e de tuberculose". 

Desde o contato, o governo paraguaio entregou a maior parte da floresta do Ayoreo aos fazendeiros, um crime que foi possível devido a atuação da MNT que os contatam à força e os retiram de suas terras. Muitos foram levados a trabalhar para os pecuaristas em condições análogas à escravidão.

O fanatismo religioso significa que eles nunca desistem

Em 2018, John Chau, um missionário norte-americano, foi morto por indígenas isolados Sentinelese nas Ilhas Andaman, depois de ter feito repetidos esforços para contatá-los. Ele morreu porque ignorou todos os avisos da comunidade para ficar longe. O chefe da All Nations, uma missão evangélica que o apoiou, disse em uma declaração (mostrando uma total falta de reconhecimento pelo desejo dos Sentinelese de se manterem isolados): “Oramos para que o sacrifício de John dê frutos eternos na hora certa.”

Apesar de ter sido expulso de alguns países e territórios indígenas, a MNT continua a evangelizar. Em 2005, o presidente Hugo Chávez expulsou 200 missionários da MNT da Amazônia na Venezuela. No entanto, alguns ficaram, pois nasceram na Venezuela, e continuaram a trabalhar com a Missão Padamo Aviação e Apoio, uma organização evangélica ligada à MNT, que descreve os Yanomami como “um dos grupos de pessoas mais primitivas do mundo”, cuja “cultura é baseada na vingança e é controlada por feiticeiros”.

Em 1995, dois missionários da JOCUM (Jovens com uma Missão) tentaram entrar em contato com o povo Hi-Merimã, mas foram pegos e expulsos pela FUNAI. Seus diários confiscados revelaram que eles sabiam que estavam infringindo a lei: “O Diabo não se contenta em perder terreno para nós e vai tentar o que puder para nos fazer recuar, para voltar. Mas em nome do Senhor Jesus Cristo continuaremos até o tempo designado pelo Senhor. Neste lugar, certamente nem a FUNAI nem a Polícia Federal nos encontrarão”.

Após a FUNAI expulsar os missionários da MNT das terras dos Zo’é em 1991, a MNT não desistiu. Luiz Carlos Ferreira, um dos missionários da MNT envolvido no contato desastroso, estabeleceu uma pequena base fora do território e atraiu alguns Zo’é para se estabelecerem ali. Em 2015, os promotores públicos entraram com um processo contra ele e um colega, os acusando de usar os Zo’é para coletar castanha-do-pará e mantê-los em condições “análogas à escravidão”. Ele foi absolvido por falta de provas.

No entanto, em 2020, um juiz condenou Ferreira por fornecer ilegalmente armas de fogo a um indígena Zo’é. Ele foi multado em R$ 20.000 e condenado a 2 anos e 8 meses de prisão, embora mais tarde sua pena tenha sido convertida para serviço comunitário. O Ministério Público observou que: “A atuação de missionários/as na região é extremamente danosa, já tendo causado até epidemias mortais entre os índios” e violado o direito dos Zo’é à autodeterminação. O juiz disse que a arma de fogo foi dada a “a uma população absolutamente vulnerável” e que dá-la aos Zo’é “trouxe diversos riscos tanto para a integridade física dos indígenas quanto para a sua cultura”, incluindo a contração de doenças.

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Outras formas de ajudar:

- Assine o manifesto pelos direitos dos povos indígenas isolados; 

Saiba mais:

- Perguntas e respostas – Povos indígenas isolados;

- Povos indígenas isolados: Contato, respeito e isolamento;

- Missão Novas Tribos: a história dos evangélicos no comando na FUNAI.

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