Missão Novas Tribos: a história dos evangélicos no comando na Funai
Uma versão desse artigo foi publicada no El País Brasil em 08 de fevereiro de 2020.
O presidente Jair Bolsonaro, um dos racistas mais poderosos do planeta, se superou. Como se suas palavras e políticas não fossem suficientes para nos convencer de sua vontade desesperada de conseguir o desenvolvimento econômico, nesta semana, ele deu dois grandes golpes nos povos indígenas. Assinou um projeto de lei que pretende abrir as terras indígenas para a mineração, agricultura e pecuária. E seu Governo nomeou um missionário evangélico, Ricardo Lopes Dias, para comandar a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai.
Lopes Dias estará encarregado de proteger os direitos dos mesmos povos que ele passou anos tentando evangelizar, fato que nos lembra que às vezes a realidade é mais surreal do que a ficção.
O senhor Lopes Dias trabalhou por muitos anos com uma organização missionária fundamentalista dos Estados Unidos, a Missão Novas Tribos (MNT), que descreve sua visão como: “Por determinação inquestionável, arriscamos nossas vidas e jogamos tudo por Jesus Cristo até alcançarmos a última tribo, independentemente de onde essa tribo possa estar.” Recentemente, eles mudaram de nome e são conhecidos agora por Ethnos360, presumivelmente com a intenção de romper as conexões com sua longa e controversa história, mas eles próprios admitem que sua “visão permanece a mesma”. No Brasil são chamados de Missão Novas Tribos do Brasil.
Sua nomeação é rejeitada por líderes indígenas como Sonia Guajajara e Joenia Wapixana, e por inúmeras organizações indígenas, como UNIVAJA, APIB, COIAB, e também pela Survival International, pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), pelo Instituto Socioambiental (ISA), entre outros. As razões são claras para quem conhece o MNT: sua ideologia assimilacionista e seu legado repugnante nas comunidades indígenas.
Quem são o Ethnos360/Missão Novas Tribos?
Atualmente, a MNT é um dos grupos missionários evangélicos fundamentalistas mais extremos. Fundada na década de 1940, seus membros acreditam que a segunda vinda de Cristo só chegará quando as últimas pessoas da terra ouvirem o Evangelho. Os povos indígenas isolados do Chaco, uma floresta de planície seca na região da fronteira entre a Bolívia, o Paraguai e a Argentina, serviram de laboratório para suas primeiras missões. Mas foi no Paraguai onde alguns de seus crimes mais terríveis aconteceram. Na segunda metade do século 20, um grupo de missionários da MNT se empenhou para encontrar o povo indígena isolado Ayoreo-Totobiegosode, o “povo do lugar dos porcos selvagens”. Eles organizaram caçadas para forçá-los a sair da floresta. Seu projeto foi uma “conquista para Deus”, que envolveu violentos confrontos que causaram a morte de vários indígenas e a destruição de toda um modo de vida. Os Ayoreo que sobreviveram foram expulsos da floresta contra sua vontade, forçados a abandonar seu modo de vida nômade. Em um processo conhecido por muitos como etnocídio, eles foram sedentarizados à força, tiveram seus cabelos cortados, forçados a renunciar a suas crenças, forçados a viver e a trabalhar nos assentamemtos missionários, vestindo roupas “ocidentais”. Apenas alguns conseguiram escapar da captura e acredita-se que hoje vivam fugindo de madeireiros na floresta.
As comunidades que viveram esse projeto explicitamente assimilacionista ainda estão lutando para se recuperar. Ainda estão tentando recuperar seu território. No ano passado, visitei os Ayoreo recentemente contatados, que ainda lutam para reconstruir suas comunidades e para proteger seus parentes isolados do contato forçado e do desmatamento. Suas vidas foram categoricamente impactadas pelo encontro com a MNT, e sua história é uma lição sobre a força destrutiva das atividades missionárias fundamentalistas.
Chagabi, um ativista e líder Totobiegosode que infelizmente morreu apenas alguns meses depois que eu o conheci, viveu os ataques da MNT quando criança. Ele me disse: “Os missionários queriam que todos os Ayoreo vivessem nesta sociedade, para que pudessem viver o que os missionários consideravam uma “vida boa”. Eles acreditavam que viver na floresta era difícil para nós, sem conhecer a palavra de Deus e da Bíblia. E eles pensaram que, ao nos forçar a sair da floresta, poderíamos ser salvos. Não era isso que queríamos. Depois disso, muitos Ayoreo-Totobiegosode morreram de doenças, problemas respiratórios e de tuberculose.”
Os povos indígenas isolados, tão desesperadamente cobiçados pela MNT, no Brasil, no Paraguai e em outros lugares, já são ameaçados por empresas e governos que desejam explorar seus ricos territórios para projetos de extração de madeira, mineração, agricultura, pecuária e outros. Esses são povos que não têm contato com o resto da sociedade e seu direito de permanecer sem contato está consagrado em leis nacionais e internacionais de direitos humanos. Eles frequentemente mostram que não querem contato, e aqueles que o impõem ameaçam sua sobrevivência.
Mas para a MNT, as almas desses “selvagens” isolados são mais preciosas, mais raras e mais cobiçadas do que o próprio ouro. Parece que a MNT faria tudo o possível para convertê-los. O título da revista da MNT é Ouro Marrom, mostrando a lógica por trás de um grupo que mercantiliza corpos e “almas” indígenas, instrumentalizando-os e atropelando o direito dos povos indígenas à autodeterminação e à autonomia. A ideologia da MNT vê os povos indígenas não como seres humanos, mas como “selvagens” que precisam ser civilizados e transformados, a qualquer custo.
Histórias de atos cruéis praticados por missionários da MNT estão por toda parte. No Brasil, missionários da MNT entraram em contato com os Zo’e à força na década de 1980 e, logo depois, um quarto deles morreu de doenças. Entre 2010 e 2012, 96 desses mesmos Zo’e foram supostamente escravizados por missionários da MNT, obrigados a coletar castanhas-do-pará na floresta em troca de roupas velhas, panelas e outros produtos industriais.
Quanto ao senhor Lopes Dias, indígenas Matsés que o conhecem bem também estão se manifestando contra sua nomeação: “Eu não quero o Ricardo na Funai. Conhecemos bem o Ricardo. Ele aprendeu a nossa língua. Nós não queremos a igreja aqui porque não posso pintar meu rosto, não posso tomar rapé, não posso usar veneno de sapo. Por isso que não quero deixar”, disse o cacique Waki.
A responsabilidade da Funai é proteger os povos indígenas isolados do contato forçado e defender seu direito à terra, a seus modos de vida, às suas crenças, garantido na Constituição. Lopes Dias disse que não pretende usar o posto para evangelizar, mas seria ingênuo acreditar em suas palavras. Muitos especialistas temem que ele possa trazer de volta a política de contato forçado, que foi rejeitada no Brasil após décadas de mortes de indígenas. A Indigenistas Associados (INA), associação de servidores da Funai, também rejeitou sua indicação.
No Paraguai, o trabalho da MNT abriu grandes partes do território Ayoreo a exploradores que derrubaram a floresta para a criação de gado e de lavouras. Eles agiram em conluio com o brutal ditador do Paraguai Alfredo Stroessner.
A proximidade de Bolsonaro com os evangélicos não é um segredo. Em 2017, ele disse: “Somos um país cristão. Deus acima de todos. Não tem essa historinha de um Estado laico. O Estado é cristão, e quem for contra que se mude. As minorias têm que se curvar às maiorias”.
Vendo esse contexto, seríamos ingênuos em ignorar a relação simbiótica que existe entre os interesses da MNT, um regime autoritário e o grande negócio. O futuro dos povos indígenas da Amazônia e os territórios biodiversos que eles cuidam por gerações estão na balança. Existem dezenas de genocídios esperando para acontecer se Lopes Dias permanecer no comando da coordenação dos indígenas isolados da Funai.